domingo, 23 de março de 2014

Capítulo Quinze - Sob Controle

Willian olhava fixamente para mim, ele passou pela escrivaninha, caminhou em passos curtos e lentos. Eu estava com os pés em cima da cadeira, como costumo me sentar. Pude ver seus lábios se mexendo, mas não consiga ouvir nada. Além disso, eu conseguia me ver, me via balançando a cabeça como se enxergasse pelos olhos de uma terceira pessoa. Ele se abaixou até ficar na minha altura e procurou meus olhos por trás dos joelhos. Eu conseguia ver seus olhos marejando e eu estava intacta, apoiada na cadeira e com os braços soltos. Will continuava falando, seus lábios se mexiam e transmitiam emoção, mas eu continuava parada e não ouvia nada, aquilo já estava me deixando desesperada.
            Abri os olhos e minha respiração estava ofegante. Foi só um sonho. Puxei o ar com toda força e soltei, olhei para o relógio e ele marcava 16h20. Acabei perdendo o sono com medo de sonhar com aquilo novamente, então fiquei rolando de um lado para o outro na cama. Fiquei pensando sobre aquilo, não conseguia entender porque não ouvi nada. Levantei e fui até o banheiro lavar o rosto e trocar de roupa, ainda havia sol e no Manual dizia que os pré-transformados sofriam grande influência disso. Significa então que eu deveria estar quase inconsciente, exatamente o contrário de como estou. Passei as mãos molhadas mais uma vez no rosto, respirei fundo e senti um perfume, um cheiro diferente. Caminhei lentamente até a porta do banheiro que estava aberta, tentei fazer o mínimo barulho e estiquei levemente o pescoço para olhar para o quarto. Caroline estava sentada na beira da minha cama bagunçada e me olhava fixamente.

            -O que você está fazendo aqui? – Arregalei os olhos involuntariamente, estava espantada.
            -Eu preciso muito conversar com você. Aquele dia você não voltou, eu pensei que tivesse acontecido algo pior. – O tom de voz estava preocupado e pareceu sincero, suas íris negras imploravam por um pouco de atenção.
            -Acho que você viu quando eu desmaiei na frente do Willian. Eu tentei voltar, mas foi impossível. – Dei de ombros e me apoiei no batente da porta do banheiro.
            -Seu nome é Kelly, não é? – Ela apertou os lábios e eu assenti com a cabeça.
            -Tá bem, me fala logo o que você quer.
            -Kelly, eu descobri que posso controlar suas visões.
            -Que? Visões? – Me fiz de desentendida, quanto menos pessoas soubessem disso melhor seria.
            -Percebi aquele dia em que vocês iam atacar o garoto na cidade.
            -Espera aí, como assim “descobriu”? – Fiz as aspas no ar com os dedos.
            -Eu não sei até onde você sabe, mas... – Ela se levantou e apertou as mãos – Eu sou uma Bruxa, existem várias Bruxas.
            -Ninguém me contou. – Ignorei o fato de ter lido algo no livro e meus ombros ficaram tensos.
            -Eu já tenho que ir, eu prometo que em outra oportunidade eu te conto tudo que você quiser saber, mas no momento só preciso que você acredite em mim. Kelly, eu sou uma Bruxa diferente das outras. Descobri que controlo suas visões, aquele dia eu te forcei a me ver na árvore, agora pouco eu te fiz ter uma visão para acordar antes para podermos conversar. E aquele dia lá em baixo eu percebi que você queria fugir do assunto e te fiz ter uma visão forte que causaria dor, só não sabia que seria tão intensa, me desculpe por isso. – Ela estava afobada e falou rápido.
            -Você precisa ir? Não pode, tem que me explicar isso. Estou confusa. Como você pode controlar minhas visões?
            -Não sei! Mas você precisava saber. Escuta, não pode contar pra ninguém que vim aqui. – Aquelas pérolas negras brilhavam e estavam arregaladas – As Bruxas tem um sistema para rastrear as outras, tenho horário para voltar, se eu demorar elas vão descobrir que estou aqui, só vamos causar problemas e é tudo que temos que evitar. – Caroline enfatizou – Eu não contei para ninguém sobre isso e nem pretendo contar. Isso é muito mais grave do que podemos imaginar. Existe uma guerra horrível que está por vir e eu só quero evitá-la, mas vamos precisar nos unir. – Ela caminhou até mim e segurou forte as minhas mãos, me senti congelada, minha mente estava a mil e eu nem conseguia raciocinar direito – Nós não precisamos querer nos destruir. Já houve paz entre nós e eu só queria trazê-la de volta.
            -Se ninguém pode saber que você está aqui então deveria ir. – Puxei minhas mãos.
            -Pelo menos acredite em mim. Não vou prejudicar ninguém. – Ela deu alguns passos para trás – Temos que nos encontrar em outro lugar, para ser mais seguro para vocês.
            -Isso é impossível. Não posso sair durante o dia. – Não tinha emoção na minha voz.
            -Tudo bem. – Ela assentiu com a cabeça e se aproximou da janela.
            -Como você chegou aqui? – Perguntei balançando a cabeça, tentando entender. Ela sorriu e apanhou uma vassoura de palha que estava ao lado da minha janela.
            -Adeus Kelly. – Ela acenou, montou na vassoura e saiu voando pela janela. VOANDO! Bizarro!

            Totalmente chocada caminhei com passos lentos para fechar a cortina que tinha ficado aberta. Sentei na cama em desordem e tentei digerir tudo o que eu tinha ouvido logo no começo da noite. Como seria possível ela conseguir controlar minhas visões? E como eu posso confiar nela? Será que estamos em risco?!

•••

            Estou cada dia pior nas aulas. Levei todas as minhas dúvidas anotadas, Nicolas fez um esforço tremendo para conseguir me explicar e eu simplesmente não conseguia prestar atenção em uma sílaba do que ele dizia. Nicolas chegou a chamar minha atenção umas cinco vezes, mas não adiantava. Meus olhos alcançavam a parede atrás dele e eu relembrava de cada palavra que Caroline tinha dito, estudava cada expressão que tinha guardado na minha memória. Acho que acabei magoando Nicolas com a minha falta de interesse e ele me dispensou mais cedo. Fiquei tão preocupada com aquela história de visão que acabei indo direto para a aula e nem tomei sangue. Assim que Nicolas me dispensou fui até o refeitório, depois subi para o escritório de Will, que como sempre estava lendo uma pilha de papéis.

            -Oi Will, posso ficar aqui?
            -Claro, mas vou precisar sair.
            -Sair?
            -Sim, Heitor quer falar comigo hoje.
           -Ah. – Alcancei a poltrona em que estava acostumada a sentar – Will... Me desculpe por ter te dito que estava enjoada de você. – Encarei o chão – Eu estava um pouco irritada. – Levantei os olhos para ver seu rosto.
            -Não tem problema. – Ele abriu um sorrisinho – Fico feliz que tenha sido só isso. – Ele deu uma leve gargalhada.
            -Sinto muito mesmo. – Me senti sem graça e sentei na poltrona.
            -Nicolas veio falar comigo.
            -Ele disse sobre a aula de hoje?
            -Sim.
            -Imagino que ele não tenha me elogiado. – Ri um tanto sem graça.
            -Estão tendo problemas?
            -Não são problemas, mas não tenho sido uma boa aluna.
            -Ele me disse que você estava dispersa.
            -Não consegui me concentrar. Minha cabeça estava em outro lugar.
      -Você gostaria de ter aulas com Jorge? Ele foi meu professor, sempre gostei as explicações dele.
            -Ele pode me dar aula?
            -Sim, ele tem formação e já deu aulas antes. Posso conversar com ele.
            -Acredito que isso possa magoar o Nicolas...
            -Você pode se desculpar depois. O essencial agora é que você aprenda.
          -Então eu quero experimentar. Mas o problema não é o Nicolas, sou eu. Não consigo me concentrar.
         -Jorge vai conseguir chamar sua atenção.
        -Espero. - Coloquei os pés em cima da cadeira, abracei as pernas e comecei a balançar minha cabeça.
            -Algum problema?
            -Não quero mais ter que ir para as aulas. Você não pode me ensinar aqui não?
            -Kelly, não é simples. – Will me olhou fixamente.
            -Eu tenho te atrapalhado muito, não é mesmo? – Soltei os braços.
            -Jamais repita isso. – Will disse com a voz um pouco alterada e não tirava os olhos de mim – Eu não posso te dar aulas porque não tenho formação. Mas eu vou sempre te ajudar.
           -Não se preocupe mais com isso. Não vou mais te dar trabalho. – Apertei os olhos para afastar as lágrimas daquela culpa imensa que estava nos meus ombros e quando abri vi Will se levantando e caminhando até mim. Ele se agachou na minha frente, colocou as duas mãos sobre meus joelhos e procurou por meus olhos escondidos atrás das minhas pernas, também havia lágrimas nos seus olhos.
          -Kelly, você não me dá trabalho algum. A minha felicidade é poder cuidar de você, saber que você está bem e está comigo. Se eu pudesse é óbvio que te daria aulas, mas isso está um pouco além da minha capacidade. – Ele fez uma pausa e respirou fundo – Você é a minha memória viva de que um dia eu fui humano, que um dia eu tive uma família, que eu fui feliz. Não importa o que aconteça, quão grande for o problema eu sempre vou estar do seu lado para cuidar de você. – Minha boca não se abria, minha garganta estava fechada e fiquei tão aliviada que nem as lágrimas queriam mais escorrer, levantei a cabeça e a coloquei em cima dos joelhos, beijei levemente a mão de Will.

            Alguém bateu três vezes na porta. Will acariciou minha bochecha com uma das mãos enquanto secava suas lágrimas com a outra. Deu um beijo na minha testa e murmurou alguma coisa que eu não entendi. Ele se levantou e pediu para que a pessoa entrasse. Era Jorge.

            -Está na hora Will.
        -Então vamos. – Ele pegou uma pasta de papel pardo e caminhou até a porta. Eu o acompanhei e antes de sair parei.
            -Quando você volta?
            -Em algumas horas. Vou atrás de você quando voltar.
            -Tudo bem. – Sorri e acenei para os dois.

      Comecei ir em direção ao meu quarto lentamente, subia degrau por degrau, me lembrando do que Will havia acabado de me dizer, então me lembrei também da aparição de Caroline e me toquei: minha visão tinha mesmo se realizado. Os pelos do meu braço ficaram arrepiados, ela não estava blefando, estava falando sério.

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