Levantei no mesmo horário do dia
anterior, mas hoje me arrumei mais rápido. Queria encontrar com Thiago antes de
ir para aula para poder me desculpar por ontem. Eu me distrai completamente
quando Nicolas chegou que nem me toquei que havia acabado de falar com Thiago.
Ao
sair do meu quarto já levei um susto, o hall do andar, a escada, todos os
andares: tudo vazio. Havia alguns adultos circulando, mas eram poucos,
pouquíssimos na verdade. Estava assustador, abandonado e as luzes apagadas
deixavam a mansão mais sombria ainda.
Alcancei
a maçaneta daquela porta enorme, empurrei-a e abri. O refeitório cheirava à
limpeza, o doce cheiro do desinfetante. Senti meu nariz queimar, à medida que o
ar entrava minhas vias ardiam. Caminhei pelo chão impecavelmente limpo até os freezers ao fundo e peguei uma bolsa de
sangue. Andei em direção até uma das mesas e vi uma mulher saindo da parte
separada do refeitório onde ficam as geladeiras, armários com utensílios e uma
pia. Os cabelos dela estavam amarrados em um rabo de cavalo desgrenhado e
alguns fios caiam sobre o rosto, ela me olhou e sorriu. Era bonita, mas seu
sorriso era amarelo, desajeitado e foi espontâneo, mas parecia transmitir medo.
Sua feição expressava exaustão. Ela tinha um pano pequeno e um vidrinho de
álcool nas mãos, notei pela primeira vez um bebedouro ao lado do portal de onde
ela saia. Abriu o álcool, virou um pouco no pano e começou a passar em volta de
um galão enorme de água que estava aos seus pés. Ela havia deixado o álcool
aberto para poder umedecer o pano constantemente e ao passar por ela e o vidro
de álcool aquele cheiro encharcou meus pulmões, como se eu estivesse afogando.
Minha faringe estava pegando fogo e eu senti como se não conseguisse respirar.
Bebi um gole do sangue e fechei os olhos tentando me concentrar apenas naquele
líquido e quando puxei o ar na tentativa de sentir o doce aroma do sangue o
álcool veio junto. Senti desespero, aquele cheiro iria me matar.
Apertei
o passo para me afastar da moça e me sentei numa mesa mais perto da porta
enorme, dava um gole na bolsa de sangue. Entraram dois adultos, me
cumprimentaram rapidamente e foram para trás pegar suas bolsas de sangue e nem
se quer olharam para a moça que estava fazendo um esforço inumano para
conseguir levantar o galão de água. Apenas fiquei observando os dois
conversando e gargalhando e a mulher já exausta fazendo um esforço daqueles.
Não me contive, deixei a bolsa de sangue quase no fim em cima da mesa e fui até
a moça, agarrei um dos lados do galão e ele não pareceu tão pesado assim, ela
ficou com os olhos arregalados e tentou tirá-lo das minhas mãos, mas eu
consegui colocar no lugar com bastante facilidade, confesso que eu não sabia
que era tão forte assim. Assim que coloquei o galão me virei e sorri para ela e
ao invés de receber o sorriso de volta ela me encarou com quase lágrimas nos
olhos e observou os dois vampiros que vinham na minha direção. Cada um segurou
em um dos meus braços, não me olharam e começaram me arrastar refeitório a
fora, escada a cima e tudo isso sem trocar nenhuma palavra.
•••
Fui
arrastada até o escritório de Will, que nos recebeu de costas e estava com cara
de quem não tinha acordado ainda. Os vampiros disseram alguma coisa com
“violação do código 12”, que para mim não ajudou em nada. Será que foi porque
eu toquei na água? Willian os dispensou com uma cara de tédio e se sentou de
frente pra mim, mas perecia que estava dormindo sentado.
-Oi
Will. – Sorri.
-Oi Kelly. – Ele bocejou.
-Acho que você não dormiu bem.
-Não
mude de assunto. Sabe por que está aqui? – Ele me encarava, mas sua voz
sonolenta fazia aquela conversa parecer falsa.
-Não
tenho a menor ideia, não senhor. – Enchi as bochechas de ar e chacoalhei a
cabeça negativamente.
-Então
me diga: o que estava fazendo antes de te trazerem para cá?
-Eu
só ajudei a moça colocar o galão de água no bebedouro, mas estão me tratando
como se eu fosse uma assassina. Fui arrastada
e falaram sobre um código. Que bobeira é essa, tio Will? – Sem reparar elevei
minha voz.
-Você
não poderia sequer ter olhado para ela.
-Por
quê? – Indaguei.
-Porque
não estabelecemos vínculos com nossas vítimas.
-Do
que você tá falando...? – Hesitei.
Will
apertou os lábios e fechou suas pálpebras lentamente, como se estivesse
esquecido de algo. Ele soltou um longo suspiro enquanto abria os olhos,
esfregou a mão no rosto e me olhou profundamente.
-Kelly,
contamos a você uma pequena mentirinha.
-Uma
mentira? Ah, não me diga! – Fui irônica.
-Não
fazemos invasões nos bancos de sangue.
-E
de onde vem tanto sangue?
-Vai
ser um pouco chocante para você, está preparada?
-Não
importa, só pare com as mentiras. – Will me encarou por mais um bom tempo –
Ande logo, por favor!
-Eu
não sei como te falar isso...
-Já
estou tão frustrada que não vou me chatear nem se um meteoro cair em cima de
você. – Me levantei da cadeira e minha voz saiu forte.
-Kelly,
não seja tão fria.
-Como
é? – Dei uma risada involuntária – Eu ajudei a moça que estava visivelmente
cansada a pegar um galão pesado, chego aqui e você diz que eu não poderia ter
olhado para ela. Quem está sendo frio Will? – Não conseguia me controlar, minha
voz saia quase como um grito.
-Se
acalme. Tudo tem uma explicação, mas entenda, é difícil. Ainda mais para você
que é uma recém-transformada, que possui vínculos fortes com a parte humana.
-Humana?
Acho que entendi. Aquela moça é uma humana. É isso que você quis dizer. –
Sentei novamente me acalmando.
-É,
é sim. – Will abaixou os olhos.
-E
o que ela estava fazendo aqui?
-Nós
mantemos alguns humanos aprisionados. Eles limpam a mansão durante o dia. Hoje
teve uma pequena falha, aquela mulher chegou a desmaiar algumas vezes e atrasou
o serviço. Eu ignorei porque pensei que ninguém acordaria cedo.
-Por
que não? Temos aula. – Me inclinei e estendi as mãos.
-Não
nos finais de semana. – Ele deu de ombros.
-Por
isso está tudo tão vazio. – Encostei-me à cadeira.
-Sim,
eu deveria ter te avisado, mas você estava tão abalada ontem que acabei me
esquecendo.
-Tudo
bem – O silêncio se manifestou por alguns minutos – Agora me explica de onde
vem tanto sangue.
-Você
tem certeza? Pode te magoar. – As palavra pareciam mais longas.
-Tenho
certeza. – Disse rápido.
-Tá
bem. – Ele se levantou e virou de costas para observar a janela – Esses
prisioneiros ou humanos, como você preferir, são vítimas bem escolhidas,
saudáveis e as quais o sumiço não terá tanto impacto no mundo deles.
-É
o mesmo mundo, isso é patético. – Minha voz saiu chorosa e Will concordou com a
cabeça.
-Existe
uma construção, não muito longe daqui, que nós chamamos de fábrica. Eles ficam
aprisionados lá, mas não sofrem necessariamente. Eles precisam continuar
saudáveis, então providenciamos camas, banheiros e comida. Lá dentro funciona
como um laboratório clínico, algumas enfermeiras vampiras recolhem o sangue dos
humanos e colocam nas bolsas para facilitar para nós. O freezer é abastecido todo dia.
-Então
aproveitam os humanos e os colocam para fazer a limpeza.
-Sim,
exatamente. – Sua voz estava baixa.
Assenti
com a cabeça e não disse nada. Não me choquei como Will e eu esperávamos, de
alguma forma senti que tinha algo errado. Não posso fazer nada, esse é mundo no
qual estou vivendo, faço parte desse universo sanguinário agora.
-O
que vai fazer hoje?
-Eu
preciso conversar com Thiago, mas não sei como vou encontrá-lo.
-Falei
com Jorge pouco antes de você chegar e Thiago ainda está dormindo.
-Acho
que não tenho planos pra hoje.
-Então
vamos conversar. – Will se encostou à cadeira e levou os braços cruzados para
trás da cabeça.
-Vai
ser ótimo, tenho algumas dúvidas.
-Nicolas
não está sendo um bom professor?
-Não
é sobre a matéria. E a propósito, bem lembrado, tenho que ler o livro.
-Então
sobre o que é?
-Sobre
o corredor cinco. – Falei lentamente observando a expressão de Will mudar
instantaneamente. No mesmo momento ele se endireitou na cadeira e me encarou.
-Eu
te avisei para ficar longe dele e pelo jeito você me desobedeceu.
-Passei
por lá antes de te perguntar. – Dei de ombros.
-Espero
que você não retorne lá. – Ele soou autoritário.
-Pra
isso tem uma condição. – Arqueei uma sobrancelha.
-Não
me venha com chantagens. – Willian me olhou com indiferença.
-Tudo
bem. – Disse enquanto me levantei, caminhei até a porta e a abri – Mas eu não
vou desistir.
-Espera
aí mocinha. – Ele se levantou e deu alguns passos na minha direção – Qual seria
a condição?
-Me
dizer por que eu não posso ir lá.
-Isso
é simples: Apenas pessoas autorizadas podem ir lá.
-Você
já está me dando náusea. – Revirei os olhos e sai, fechando a porta com força.
A escada já estava mais movimentada, aproveitei e fui para o refeitório pegar
mais uma bolsa de sangue antes de subir para o meu quarto.
Cheguei
ao térreo e parecia um dia normal, já estava cheio de vampiros adultos e
pré-transformados circulando pela mansão. Caminhei em direção a porta do
refeitório, mas estava tão distraída que esbarrei em alguém. Sou um desastre.
Para minha sorte era justamente quem eu estava procurando: Thiago.
-Oi
Kelly, tá tudo bem? – Aquele olhar de preocupado tomou conta dos seus olhos
azuis.
-Oi
Thiago. Desculpe, eu estava distraída. – Soltei os ombros – Estou bem sim.
-Fiquei
preocupado, você sumiu do refeitório ontem e não apareceu na aula. – Ele
pareceu se preocupar de verdade.
-Me
desculpa, eu não devia ter saído sem me despedir. Queria mesmo falar com você
sobre isso. Sinto muito.
-Você
está bem?
-Sim,
é que... – Ele me interrompeu.
-Vamos
sentar no refeitório pra conversarmos, você deve estar com sede.
-Não,
não. Eu acordei cedo, já tomei. – Ele assentiu com os olhos atentos – Depois que
Cristina saiu eu desci até aqui e abri a janela, estava curiosa. O problema é
que o sol estava muito forte e eu acabei desmaiando.
-E
como...?
-Por
sorte o Nicolas me viu caída e me levou para a enfermaria de novo. Então quando
acordei Cristina disse que eu não poderia sair por um mês, agora estou tendo
aulas teóricas.
-Mas
o professor está dando aulas práticas. – Vi confusão nas suas íris azuladas.
-Nicolas
se ofereceu para me ajudar.
-Ah,
entendi. – Ele assentiu, mas não parecia feliz.
-De
qualquer forma, me perdoe por ontem. – Apertei os lábios.
-Não
tem problema, fico feliz que esteja tudo bem. – Ele abriu um sorriso – E sobre
o primeiro desmaio, você se sente melhor?
-Sim,
estou ótima agora. – Retribui o sorriso.
-E
o que pretende fazer hoje? Não temos muitas opções por aqui. – Ele sorriu e
levantou os ombros.
-Eu
preciso ler o livro.
-O
Manual de Transformação?
-Sim.
– Assenti com a cabeça – E quais são seus planos?
-Fugir
do meu pai, fugir do meu pai... – Ele enumerava com os dedos e ficou pensativo
– E fugir do meu pai.
-Por
que isso? – Ri e Thiago riu junto.
-Se
ele ver que eu não estou fazendo nada vai pedir ajuda para as ideias malucas.
Cada fim de semana ele inventa uma atividade nova. – Ele soou como se falasse
de uma criança.
-Você
deveria passar um tempo com ele. Pode ser bom. – Sugeri.
-Quem
sabe.
-Boa
sorte, divirta-se. – Sorri mais uma vez e alcancei a porta do refeitório.
-Obrigado,
você também. – Ouvi sua voz ao fundo.
Adentrei
o refeitório e fiz o mesmo caminho que tinha feito mais cedo. Peguei uma bolsa
e subi para o meu quarto. Deixei ela de lado no criado mudo e me apoiei na
cabeceira da cama para ler o livro didático. As primeiras páginas explicavam
tudo pelo que eu tinha passado e certamente fizeram sentindo. Continuei minha
leitura, me senti interessada e nem parecia uma leitura obrigatória.
•••
Li
a noite toda, me revirei um pouco na cama, peguei meu caderno, fiz algumas
anotações. Até que passou rápido, percebi que estava amanhecendo quando o
cansaço me pegou de jeito, mal conseguia mantes os olhos abertos. Peguei a
bolsa de sangue que já tinha adquirido a temperatura da noite e bebi todo seu
conteúdo, dessa vez não me dei o trabalho de colocá-la no lixo, deixei em cima
da escrivaninha e fui para o banheiro me aprontar. Assim que deitei peguei
facilmente no sono e não me lembrei de sonhar com nada.
Esqueci
de desativar o despertador e acordei cedo novamente, mas não me senti cansada e
então continuei acordada. Passei alguns minutos encarando o teto, me lembrando
de tudo o que tinha me tornado e não consegui sentir nojo de mim como gostaria,
a culpa não era minha no final das contas. Levantei, fui para o banheiro lavar
o rosto e trocar de roupa, passei novamente o creme que Cristina tinha me dado
e estava realmente funcionando, o que foi um alívio. Sai do banheiro, ajeitei
minha cama e fui para frente do espelho pentear o meu cabelo, abaixo do espelho
estava a escrivaninha onde eu tinha deixado a bolsa de sangue vazia. Tomei
aquela embalagem nas mãos e a estudei atentamente. No verso estava impresso o tipo de sangue, a idade do doador e os tipos de alimento que ele consumia,
com fonte menor estava impressa a data de extração e a durabilidade, que seria
de três dias.
Se
não fossem alguns detalhes ela iria realmente parecer uma bolsa do banco de
sangue. Finalmente joguei-a no lixo e desci em busca de outras duas. Não quis
esperar muito tempo no refeitório então subi enquanto saboreava uma das bolsas,
lá em cima deixei a outra de lado enquanto me livrava de mais uma bolsa vazia.
Retomei o livro e continuei rolando pela cama em busca de uma posição que só
era confortável por cinco minutos, mas que não fazia diferença alguma já que
estava me entretendo realmente com aquele livro que involuntariamente menosprezei.
Li por mais uma noite, então terminei o livro e meu segundo dia de folga. Fui
me preparar para outro dia de sono, bebi o sangue, troquei de roupa, escovei
minhas presas, que agora me agradavam cada dia mais e me deitei. Nunca fiquei
tão feliz em pensar que teria aula na noite seguinte. E mais uma vez dormi sem
dificuldade alguma.
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