sábado, 23 de novembro de 2013

Capítulo Dez - O mundo sob meus olhos

Thiago

           Alice havia ressurgido das cinzas. Planejei pegar uma bolsa de sangue e rapidamente voltar. Meu estômago e minha garganta estavam secos, respirar estava difícil. Pretendia ser o mais rápido possível, mas ela cruzou meu caminho.
            Depois de receber alta Alice parecia ter ficado mais insuportável, melosa e grudenta. Já tinha me esquecido da sua voz aguda e como aquilo me perturbava. Diferente de Kelly. Ontem na aula, a primeira vez que vi seus olhos azuis perdidos já soube que ela era diferente. A voz dela é doce e calma, me tranquiliza. Ela é linda. O sorriso dela é tão sincero quanto a noite e brilha como a lua. Me sinto bem perto dela. Melhor ainda, mesmo com todos os micos que eu paguei perto dela, ela não se importou, apenas riu e me ajudou. Cara, nunca fiquei tão constrangido!
            Lembrando disso me desliguei totalmente do drama de Alice. Já estávamos perto do refeitório e ela escorregou sua mão que segurava meu braço até minha mão e entrelaçou nossos dedos. Ela continuava falando, abri a porta do refeitório e passei na frente, andei rápido tentando me soltar.
           
            -Calma Thi! Vai devagar! – Ela usou a outra mão pra me segurar.
            -Dá um tempo Alice! – Puxei meu braço com força e caminhei rápido até o freezer. Esse horário o refeitório estava cheio e foi uma tortura ver aquela quantidade de aluno consumindo sangue enquanto eu morria de sede.

            Alcancei o freezer e rapidamente peguei um saquinho. Enquanto meu corpo agia automaticamente eu refleti sobre o sangue industrializado. Relacionei com os sucos de caixinha e tem tudo a ver: já vem pronto e é só por na geladeira antes de beber. Dei uma golada que consumiu quase metade do conteúdo. Fiz uma pausa e respirei profundamente, senti aquele líquido gelado percorrendo todo meu corpo, me senti aliviado. Caminhei em direção a porta do refeitório devagar enquanto bebia, estava quase alcançando a maçaneta quando ouvi Alice me chamando.

            -O que foi? – Perguntei me virando sem sair do lugar.
            -Não vai me fazer companhia?
            -Não.
            -Thi! Vai me deixar aqui sozinha? Você tem a obrigação de ficar aqui comigo! – Ela disse com a sua voz insuportavelmente melosa.
            -Alice, entenda que não temos nada! Não me perturbe mais com essa palhaçada! – Estava perto dela e não gritei, mas falei firme. Ela simulou uma cara de choro, eu simplesmente dei as costas e sai.

Caminhei depressa até o banquinho, mas ela não estava lá. Pensei que tivesse cansado de esperar e subido para o quarto. Voltei para dentro com a intenção de ir atrás dela, subi a escadaria com passos largos e alcancei a porta dela, bati. Nada. Abri e pedi licença, o quarto estava vazio e a cama desarrumada. Fechei a porta e fui em direção ao meu. Talvez ela tivesse saído com Willian.
Abri a porta do meu quarto e em cima da cômoda estava o livro que eu tinha pegado na biblioteca ontem depois da aula. Eu já havia lido, mas ao ouvir alguns boatos sobre Kelly resolvi reler o ‘Manual de Transformação’. Até onde consegui ler antes de pegar do sono não falava nada sobre alterações diretas e rápidas e menos ainda sobre visões. Ouvi meu pai conversando com Willian na porta do quarto antes de transformarem Kelly, no começo pensei ter ouvido coisas, mas assim que a conheci considerei todas as opções.
Ela não era estranha. Muito menos distraída e nem desastrada. O que mais poderia evidenciar que era diferente? Seus olhos? São claros, sim, mas os meus também são e eu não tenho visões. Será que é algum trauma interno? Não, não deve ser.
Observei a capa e caminhei lentamente até a cama com o saquinho em uma mão e o livro na outra. Sentei e me ajeitei apoiando as costas na cabeceira da minha cama, dei uma golada no sangue e reabri o livro na página em que havia parado. Continuei minha leitura, já sabendo o que esperar das próximas páginas. Já estava lendo aquele livro pela milionésima vez, conhecia cada vírgula, cada orelha nas páginas. Mas ainda sentia que faltava algo. As próximas páginas li bem rapidamente enquanto saboreava o resto do sangue, pulei algumas folhas e nada. Continuei lendo até pegar no sono.

•••
Acordei num pulo. Meu braço estava todo arrepiado e meu coração batia forte, como se quisesse furar meu peito. Meu peito começou a latejar e uma dor aguda acompanhava a falta de ar, senti meus pulmões enfraquecidos, pensei que eu estava morrendo.
Lembrei-me imediatamente do que aprendi sobre transformação. São sintomas do que chamar de “falso infarto”, significa que estamos indo bem e que estamos morrendo.
Tossi e senti gosto de sangue na boca. Levantei a mão que estava caída na lateral da cama com o saquinho de sangue, ainda tinha um pouco e não estava gelado. Tomei o resto e me senti um pouco melhor, precisava de mais. O problema é que eu já tinha tomado bastante e não poderia tomar muito mais. Joguei as pernas para fora da cama e me pus de pé. Sai do quarto me dirigindo até o refeitório, a escadaria totalmente vazia significava que o Sol já estava nascendo. Isso afeta os novatos de um jeito realmente surreal, qualquer encosto parece uma cama confortável. Desci as escadas e vi alguns professores conversando na sala e tomando sangue em taças (o que eu acho desnecessário), fui até o refeitório e me deparei com ele mais deserto ainda, se for possível.
Alcancei uma das geladeiras e peguei uma jarra de sangue feita para aqueles que estão “começando” e não aguentam beber um saquinho inteiro, peguei um copo no armário e coloquei menos da metade. Na mesma geladeira tem um vidrinho de conta gotas preparado com uma receita que eu não conheço muito bem, só sei quando devo usar.
Desde que meu pai começou a dar aula, isso há uns 12 anos, eu frequentava como um adolescente normal (mesmo sendo criança). Vi alguns alunos terem os mesmo sintomas que tive há pouco e meu pai sempre preparava a bebida do mesmo jeito: pouco sangue e dez gotas do “remédio”. Dizem que ameniza a dor, isso quando não a cessa totalmente e era o que eu esperava de fato. Não tenho a menor ideia de como é um infarto, mas deve ser algo parecido com isso, senti pena das pessoas que morrem disso, porque realmente dói. Está escrito nos livros que os pré-transformados sentem isso quando vão se transformar totalmente, mas não é incomum acontecer antes. Por vias das dúvidas, vou tomar a “poção mágica”, não quero agonizar até ser transformado, mesmo não sendo o meu tempo ainda.
Apertei a tampinha dez vezes e o líquido transparente que escorria não alterava em nada a aparência do sangue no copo, não tinha cheiro, não tinha cor e era ralo. Tampei o vidrinho e o devolvi na geladeira junto com a jarra de sangue, bebi o conteúdo do copo de uma vez. Depositei-o na pia e fui até o freezer apanhar outra bolsa de sangue. Com ela na mão sai do refeitório e comecei subir lentamente os degraus da escadaria quando vi ao longe Willian descendo como uma bala.

-O que foi? – Aquilo não era normal.
-Preciso de sangue. – Ele bufou olhando para a minha mão – Kelly desmaiou e acabou de acordar, preciso levar para ela. – Sua respiração estava pesada.
-Kelly? – Demorei para digerir suas palavras e elas desceram com espinhos pelo meu estômago, assim que entendi o que estava acontecendo me desesperei. A Aflição de Willian me dava náusea e eu não queria acreditar naquilo.
-É – Ele respirou profundamente e começou a descer novamente.
-Tá aqui na minha mão, vamos logo! – Subi correndo em direção a enfermaria e ele rapidamente me acompanhou.

Chegando na enfermaria Willian tomou o saquinho da minha mão e entrou numa salinha me proibindo de entrar lá. Esperei alguns minutos sentado e ele voltou se sentando ao meu lado. Nunca pensei em compartilhar qualquer tipo de preocupação com ele, mas sua expressão era de desastre total, como se seu mundo estivesse desabando, ele estava realmente preocupado.

-O que aconteceu?
-Eu não sei. Estávamos conversando normalmente e então ela despencou no chão.
-Isso tem algo a ver com as visões? – Olhei para Willian enquanto perguntava e ele me olhou surpreso – Ouvi você e meu pai conversando sobre isso algum tempo antes de conhecer Kelly. Era dela que vocês falavam?
-A mãe dela tinha visões, mas foi por causa da transformação. Não sabemos ainda... – Willian suspirou firme e colocou a mão nos olhos – Ela tinha acordado, mas parece que voltou a dormir de novo.
-Ela corre algum risco?
-Não sabemos o que levou ela a desmaiar. Cris examinou e tá tudo bem com ela, mas tem algo muito estranho nisso tudo.
-Vai ficar tudo bem com ela. – Assenti com a voz firme, mas a minha cabeça estava girando, eram tantas possibilidades.
-Vai sim.

Ficamos alguns longos minutos em silêncio e percebi que Willian além de preocupado parecia cansado.

-Você pode ir descansar se quiser. Eu fico aqui e vou te chamar quando ela acordar.
-Obrigado, mas não precisa. Eu vou ficar também. – Ele assentiu com os olhos fechados.

Concordei e permanecemos mais algum tempo em silêncio. Aquilo me perturbava. Era como esperar alguém numa cirurgia de risco: o peito aperta, a garganta seca e não há o que fazer para melhorar.
Comecei a pensar no que eu estava fazendo ali. Perdendo minhas horas de descanso por uma garota que eu havia conhecido há dois dias. Uma garota que era diferente e merecia todo tipo de atenção, que era adorável.
O jeito meigo dela me fazia lembrar da minha mãe, que infelizmente conheci só por foto e por meu pai. Tenho a impressão que ela tinha olhos doces e uma voz suave, que ela cuidava de todos, era como uma mãezona, até dos amigos. Ela parecia ser carinhosa e cheia de afeto. Meu pai teve motivos de sobra pra se apaixonar por ela.
Queria tanto tê-la conhecido, crescido com ela. E ela não está aqui hoje por causa do maldito dia em que meu pai foi transformado! Eu odeio ser vampiro, fui obrigado a ser transformado, nem era meu destino! Minha mãe deveria ter abandonado meu pai, estaríamos bem agora. Eu a teria e ela me teria, seria perfeito, não precisaríamos de mais ninguém. Quem sabe depois de alguns anos Heitor permitiria que meu pai nos visitasse às vezes. Mas isso não aconteceu, eu tive que crescer nessa casa infernal com adolescentes sanguessugas, fugindo de cada presa que parecia me atacar a qualquer momento. Essas criaturas que não sabem se controlar. Desgosto. São todos incompetentes.
Tive a pior infância que uma criança poderia ter. Mas tudo bem. O que interessa é que a minha adolescência chegou e conheci alguém que eu acreditava poder mudar meus dias. Sinto que vou me divertir com ela, só espero que não morra de amores por mim. Vai ser insuportável se isso acontecer.


-Ela está acordando. – Cristina, a enfermeira-chefe da enfermaria apareceu na porta da sala, tinha um sorriso bonito e claro nos lábios. Fiquei aliviado. 

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